Sorvete, mascarpone e coquetéis lavados com leite podem parecer prazeres simples — mas os servidos em um restaurante com duas estrelas Michelin na Dinamarca tinham um ingrediente extra: formigas.
O Alchemist, em Copenhague — atualmente classificado como o 5º melhor restaurante do mundo pela lista The World’s 50 Best Restaurants — se descreve como “meio laboratório científico” e tem uma forte inclinação para a experimentação culinária.
As “formig-ices” do restaurante começaram quando a equipe notou que o leite começou a coalhar depois que um chef o deixou na geladeira com uma formiga dentro. Isso levou a experimentos envolvendo antropólogos, inovadores culinários e cientistas de alimentos, contou à CNN a pesquisadora em inovação alimentar Nabila Rodríguez Valerón.
Ela é chefe de fermentação de sabores na empresa dinamarquesa de tecnologia alimentar Summ Ingredients (antiga Nutrumami), ex-cientista de alimentos do Alchemist e coautora de um estudo descrevendo os resultados, publicado na revista iScience.
A fermentação do leite em queijo e iogurte remonta a cerca de 9.000 anos, na Anatólia, região que faz parte da atual Turquia, segundo o estudo.
Microrganismos provenientes de plantas naturais, como pinhas e urtigas, adicionados ao leite, dariam início ao processo de fermentação que transforma o leite em iogurte espesso e ácido.
No entanto, depois que microbiologistas conseguiram produzir o alimento em laboratório no início dos anos 1900, houve uma transição do iogurte tradicional para uma versão simplificada e industrializada, que contém apenas duas espécies de bactérias do ácido lático, disseram os pesquisadores.
Isso torna o iogurte “seguro para a grande escala em que precisamos produzir alimentos, mas o interessante sobre a versão tradicional é que ela pode conter algumas dessas duas espécies, porém tem muitas outras, o que adiciona complexidade”, disse à CNN a autora principal do estudo e bióloga Veronica Marie Sinotte, professora assistente da Universidade de Copenhague.
Os pesquisadores, portanto, decidiram explorar uma prática tradicional de primavera na Bulgária, que consiste em fazer iogurte usando uma colônia de formigas vermelhas-da-madeira, acreditando que as formigas e seus microrganismos poderiam contribuir com as enzimas e os ácidos necessários para iniciar a fermentação.
A equipe do estudo visitou Nova Mahala, na Bulgária, vila ancestral da coautora e etnógrafa Sevgi Mutlu Sirakova, doutoranda no Rachel Carson Center for Environment and Society, da Universidade de Munique.
A comunidade local “tinha apenas algumas memórias vivas” dessa prática, mas ajudou os pesquisadores a tentar produzir o iogurte várias vezes, disse Sinotte.
A equipe então produziu um alimento de formiga final ordenhando uma vaca, aquecendo o leite, despejando-o em um frasco, adicionando quatro formigas vivas, cobrindo o frasco com um pano de queijo e enterrando-o dentro da colônia de formigas, acrescentou ela.
Embora “fosse início de maio, então estava um pouco frio naquela época e talvez a fermentação tenha sido um pouco mais lenta que o normal”, no dia seguinte eles descobriram que o leite “estava em um estágio inicial de iogurte. Tinha um leve sabor ácido” e havia começado a engrossar, disse Sinotte.
Sabor ácido, cítrico e sedoso
Para testar como o iogurte de formiga poderia ser usado na culinária, a equipe de pesquisa e desenvolvimento do Alchemist criou três pratos, usando formigas vivas, congeladas e desidratadas.
O primeiro foi um sorvete “ant-wich”, feito com iogurte de ovelha que havia sido fermentado com formigas vivas.
O prato foi servido entre biscoitos em formato do inseto, com um gel infundido de formigas, de acordo com o estudo, que observou que “elas forneceram uma acidez distinta e pungente que contrasta com a gordura do leite”.
O segundo foi um “mascarpone” de leite de cabra, com formigas desidratadas usadas para iniciar a fermentação do leite. Embora a textura fosse semelhante à de um mascarpone comum, “o sabor era pungente e aromático, como o de um queijo pecorino maturado”, disseram os pesquisadores.
A criação final foi um coquetel lavado com leite. Normalmente, o ácido cítrico é usado para coalhar o leite, antes que os sólidos sejam removidos, resultando em uma bebida encorpada. Aqui, no entanto, foram usadas formigas desidratadas para induzir a coagulação. O prato também continha licor de damasco e conhaque, segundo o estudo.
“O coquetel lavado com leite, uau, foi fenomenal. Absolutamente incrível, porque tinha a acidez das formigas, que é cítrica, mas um pouco mais complexa do que a do limão”, disse Sinotte, acrescentando que a bebida tinha um sabor “incrivelmente sedoso”.
“Um microrganismo produz um composto de aroma específico, mas quando você usa muitos diferentes — como, por exemplo, todos os microrganismos que as formigas carregam com elas — a complexidade se torna semelhante à do fermento natural ou, por exemplo, do missô ou do molho de soja”, disse a coautora do estudo, Valerón.
Um porta-voz do Alchemist disse à CNN que o “ant-wich” chegou a ser servido no restaurante por cerca de um ano e foi “muito apreciado” pelos clientes.
Os pesquisadores também realizaram experimentos adicionais em condições estéreis em um laboratório na Dinamarca, com formigas de uma espécie irmã daquelas usadas na Bulgária.
No ambiente controlado, a equipe esmagou as formigas para liberar mais enzimas e microrganismos, e deixou o leite por oito horas em condições mais quentes do que as da Bulgária, disse Sinotte.
Os pesquisadores descobriram que os insetos vivos funcionaram muito melhor do que os desidratados e congelados como iniciadoras da fermentação.
As formigas vivas introduziram consistentemente ácido lático, bem como ácido acético, no leite, e o iogurte do animal vivo continha várias espécies de bactérias do ácido lático, de acordo com o estudo.
Nos iogurtes feitos com formigas congeladas e desidratadas, havia pouca presença de microorganismos do ácido lático, mas eles continham várias espécies de bactérias conhecidas como Bacillaceae, uma das quais era um contaminante alimentar, observaram os pesquisadores.
Eles acrescentaram que insetos desidratados e congelados, bem como seus iogurtes, são “indesejáveis” para a fermentação de alimentos.
“É um dos estudos mais encantadores que li em muito tempo”, disse à CNN Changqi Liu, professor da Escola de Ciências do Exercício e Nutricionais da Universidade Estadual de San Diego, que não participou do estudo.
“Isso mostra que os insetos são mais do que apenas uma fonte nova de nutrientes. Eles podem desempenhar um papel na transformação e diversificação da forma como produzimos alimentos”, afirmou.
“Também nos lembra que práticas tradicionais podem revelar novos insights científicos quando examinadas de perto”, continuou Liu, acrescentando: “Pessoalmente, eu adoraria experimentar iogurte de formiga, desde que venha sem parasitas e patógenos.”
Não tente isso em casa
Apesar de pratos com formigas serem servidos no Alchemist, os pesquisadores alertam para que as pessoas não tentem fazer iogurte do inseto em casa, a menos que isso já faça parte de sua cultura ou que sejam microbiologistas de alimentos experientes, devido a “questões de segurança alimentar”.
As formigas vermelhas-da-madeira europeias usadas no estudo podem carregar um parasita, Dicrocoelium dendriticum, que pode ser “perigoso” para os humanos, disseram os pesquisadores.
Ao misturar as formigas vivas com o leite, os cientistas coaram o leite por meio de um filtro que permitia a passagem de bactérias e leveduras, mas que removia quaisquer parasitas.
Embora o congelamento também possa matar o parasita, congelar e depois aquecer o leite por um longo período para a fermentação poderia fazer com que surgissem patógenos alimentares, de acordo com o estudo.
“É uma preocupação muito válida”, disse à CNN a química de alimentos Andrea Liceaga.
“Mas, como eles também mencionaram no estudo, existem outras maneiras de mitigar esses riscos de segurança”, disse Liceaga, professora de ciência dos alimentos na Universidade Purdue, em West Lafayette, Indiana, que não participou do estudo.
Os cientistas observaram que avançar com a pesquisa não se trata apenas de descobrir como ampliar a produção de iogurte do inseto.
As formigas vermelhas-da-madeira europeias estão listadas como quase ameaçadas na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza.
“Na verdade, não é viável sair por aí colhendo um monte de formigas para fazer isso”, disse Sinotte.
“Elas são importantes e fazem parte dos ecossistemas. Então, o que poderíamos pensar é que talvez essas formigas realmente tenham bactérias interessantes nelas, e poderíamos coletar algumas dessas bactérias e ver como elas funcionam na fermentação para novos tipos de alimentos.”
A fermentação tradicional “faz muito sentido”, disse Valerón, porque usar uma “enorme” comunidade de microrganismos “é muito mais saudável do que consumir apenas uma cepa de bactéria” e é “bom para o intestino humano”.
“Então, eu adoraria ver esse tipo de fermentação no futuro, e acho que é o caminho que os sistemas alimentares ou a indústria de alimentos deveriam seguir, com a diversidade de diferentes microrganismos”, acrescentou.