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A partir de um desconforto por não se sentir representado no estilo em que firmou suas raízes, o cantor Gabeu, 27, deu origem a um subgênero da música caipira que inclui as pessoas LGBTQIA+: o queernejo.
Apesar de defender que a criação não foi tão intencional quanto parece, o filho de um dos maiores intérpretes do sertanejo, Solimões, 63, foi precursor de um movimento que promove um ambiente de inclusão em um gênero musical tipicamente masculino e heterossexual.
“O queernejo surgiu de uma forma muito natural, porque o sertanejo sempre foi uma coisa muito latente dentro de mim, mas, ao mesmo tempo, sempre fui muito consumidor de cultura pop. A minha diva é a Lady Gaga”, disse em entrevista à CNN.
Natural de Franca, no interior de São Paulo, Gabeu contou que tentou se distanciar da música caipira em sua adolescência “rebelde”, mas, quando decidiu investir na carreira musical, voltou às origens e criou seu próprio espaço no gênero.
“Pensei em fazer esse trabalho de resgatar a cultura caipira, a alinhando com o fato de eu ser uma pessoa LGBT, trabalhando as duas coisas de forma harmoniosa”, refletiu.
Ainda, citou que o queernejo também surgiu com a intenção de abraçar outros artistas que vivem fora das capitais e que não se sentem representados dentro do sertanejo.
Cresci no interior sendo uma pessoa LGBT e, durante muito tempo não me encaixei ali, sentia que não era meu lugar e precisei ir para São Paulo. Isso é um movimento muito natural de LGBTs do interior, que vão para uma cidade maior para buscar um pouco mais de liberdade e tranquilidade
“Vamo assumir o nosso amor rural”
Em maio de 2019, Gabeu lançou sua primeira música, “Amor Rural” — uma composição própria —, que acumula 2 milhões de visualizações no YouTube desde que foi publicada.
O clipe, feito com a ajuda de amigos do curso de cinema, traz o cantor no centro da imagem com roupas típicas da cultura caipira em um cenário que imita um celeiro.
Apesar de parecer um vídeo comum da música sertaneja, a letra vem para surpreender o primeiro público do movimento que estava sendo criado ali.
“Vamo assumir o nosso amor rural/Sai desse armário e vem pro meu curral/Como ‘nóis’ nunca se viu/Duas potrancas no cio/Num cruzamento adoidado/Vamo assumir o nosso amor rural/Larga essa inchada e pega no meu ***/Quero montar na sua cela/Cavalgar até ela descobrir/Que nóis é viado”, diz a letra de “Amor Rural”.
Ainda, a música foi relacionada ao filme “O Segredo de Brokeback Mountain”, que em 2005 chocou alguns espectadores ao retratar um caso amoroso entre dois homens.
“Gosto muito de cinema western também, o que, de certa forma, inspira algumas músicas. Muitas pessoas associam ‘Amor Rural’ ao filme, e acho que tem um pouco a ver, sim. Se a gente coloca a música ali de trilha sonora, casa perfeitamente”, disse à CNN.
A drag queen do sertanejo
Enquanto isso, a cantora Reddy Allor dividia sua rotina nas redes sociais e usava as plataformas de vídeos para publicar regravações de canções tradicionais caipiras — especialmente no YouTube.
Natural de Olímpia, também no interior de São Paulo, a drag queen começou na música aos 12 anos, quando formou uma dupla sertaneja com o irmão, a Guilherme e Gabriel.
Além do sertanejo ser muito potente na região, toda a minha família materna tem um pézinho na música. Não me lembro de algum momento na minha vida em que não existisse cantoria e música caipira. Costumo dizer que aprendi a cantar sertanejo da mesma forma que aprendi a andar e falar
Em 2019, mesmo ano em que Gabeu lançava “Amor Rural”, Reddy Allor publicou sua primeira inédita, “Tira o Olho”. A surpresa veio quando a cantora Marília Mendonça compartilhou o hit em suas redes sociais, fazendo com que a drag fosse notada pelo mercado da música sertaneja.
Na época da publicação de sua faixa, também veio a aproximação dos dois precursores do movimento LGBTQIA+ no universo caipira.
“Assim que eu lancei minha primeira música, em 2019, o Gabeu me mandou mensagem e disse que ele também estava se programando para lançar a sua e que tinha se identificado com a sonoridade. A partir disso, nunca mais paramos de conversar. A nossa vontade e propósito eram muito parecidos, então o queernejo começou ali“, contou na entrevista.
Grammy Latino e reality show
Em continuidade aos encontros da carreira de Gabeu e Reddy Allor, 2022 foi um grande ano para os dois.
O cantor foi indicado ao seu primeiro Grammy Latino, na categoria Melhor Álbum de Música Sertaneja, com “Agropoc” — que inclui a faixa “Amor Rural”. Mesmo não levando o gramofone para casa, a indicação foi mais um passo para o queernejo ser reconhecido.
Os holofotes também foram apontados para Reddy Allor, que venceu o reality show musical “Queen Stars Brasil” no qual, em diversas etapas, cantou músicas sertanejas clássicas, como “Evidências”.
Após vencer o programa, gravou um álbum no trio Pitayas, ao lado de Diego Martins e Leyllah Diva. No ano seguinte, em junho de 2023, viu mais portas se abrirem em sua carreira ao assinar um contrato com a gravadora Som Livre.
Em 2024, Gabeu e Allor se uniram para gravar um álbum de oito faixas, “Cavalo de Troia”, incluindo um hit com a cantora Gaby Amarantos, “Clichê dos Amores” — que soma cerca de 1 milhão de plays nas plataformas de música.
Raízes caipiras
Apesar de agregarem diversas referências internacionais, Gabeu e Reddy Allor não fogem de suas raízes no momento de produzir suas músicas.
O filho de Solimões revelou que, além de usar como inspirações suas divas pop como Beyoncé e Lady Gaga — que já tiveram fases inspiradas no country com “Cowboy Carter” e “Joanne”, respectivamente — escuta Tião Carreiro, Milionário & José Rico, e sua dupla sertaneja preferida, Cascatinha & Inhana.
“Gosto deles pela poesia, representatividade e por ser uma dupla formada por pessoas pretas, um homem e uma mulher, que eram um casal. Não é uma dupla que muitas pessoas fora do sertanejo conhecem, mas eles têm grandes sucessos que já furaram muito a bolha. A voz da Inhana é uma coisa surreal”, contou à CNN.
Para a drag queen, a inspiração caipira vem de Milionário & José Rico, Chitãozinho & Xororó, Zezé Di Camargo & Luciano, Chrystian & Ralf e Bruno & Marrone.
Ainda, os dois ressaltaram as referências dentro do próprio queernejo, como Gali Galó e Aline Marcondes — além de artistas LGBTQIA+ que também levam a representatividade da cultura caipira: Lauana Prado, Luiza Martins, Yasmin Santos, Mari Fernandez, entre outras.
Inclusão na cena caipira
Gabeu e Allor comentaram sobre a recepção que sentiram nos encontros de bastidores com os cantores de sertanejo que já estão incluídos na cena comercial.
“Com quem eu tive oportunidade de conversar, me recebeu e me tratou de uma maneira muito boa. Essa foi uma coisa que me surpreendeu, porque não esperava que o mercado sertanejo fosse se abrir. Entendo que ser o filho de uma pessoa já respeitada e querida por muitas pessoas também influencia na forma como as pessoas vão me enxergar”, disse o cantor.
E Reddy Allor completa: “alguns demonstram curiosidade e apoio, enquanto outros ainda estão se acostumando com essa nova proposta. É um processo de construção e diálogo, e acredito que, com o tempo, haverá mais abertura e colaboração.”
Gabeu reforça que, apesar da nomenclatura poder dar a entender que o queernejo é um novo gênero musical separado, ainda é formado por artistas que cantam a música sertaneja.
As nomenclaturas surgem pra gente se apoiar no novo, ter onde segurar, mas no fundo, tudo é música sertaneja, só que cantada por vivências e histórias diferentes
